SEGUE ABAIXO UM TEXTO ANTIGO, MAS DE UM TEMA RECORRENTE QUE SEMPRE VALE UMA REFLEXÃO MAIS APROFUNDADA.
OUTRO TEXTO DE ALI KAMEL, JORNALISTA E DIRETOR DE JORNALISMO DA REDE GLOBO DE TELEVISÃO. QUE NESTE TEXTO, MOSTRA COMO DADOS ESTATÍSTICOS QUE APARENTEMENTE DIZEM COISAS CLARAS, PODEM QUERER DIZER OUTRAS MUITO MAIS RELEVANTES.... E COMO ISSO É UTILIZADO PARA VALIDAR POLÍTICAS DE COTAS SEGREGACIONISTAS NO NOSSO PAÍS.
O RACISMO E OS NÚMEROS (ali kamel)
Quando eu estava entrando na adolescência, era travesso. E adorava biologia. Um dia, respondi a todas as questões de uma prova, começando sempre assim: “É óbvio que”, e dava a resposta. Tirei boa nota, mas recebi uma lição extra do meu professor Wanderley Lopes. “Dizer que uma coisa é óbvia é chamar o outro de burro.” Nem por um minuto imaginei que foi esta a intenção de minha amiga brilhante e parceira de profissão Míriam Leitão. Mas me lembrei do episódio ao ler ontem, no seu artigo, a afirmação, em relação ao suposto racismo do brasileiro: “São muitos os sinais (...) de que afinal a elite não quer mais se esconder atrás da negação do óbvio.” Não me senti ofendido, porque sei que foi um jeito automático de falar. Porque todos com alguma afinidade com as ciências e a filosofia sabem, e Míriam sabe como poucos, que o óbvio não existe. Nada é simples na vida.
A começar pelos números. Quer chegar a conclusões próximas da verdade? Então vá aos números, mas a todos os números e não apenas àqueles que são favoráveis à sua tese. Na contestação a meu artigo “Não somos racistas”, Míriam e alguns leitores disseram, citando tabelas do IBGE, que os negros ganham a metade do que ganham os brancos. Disseram mais ainda: os negros com mesmo nível educacional ganham menos que os brancos. É verdade? É, mas os dados não demonstram o racismo.
Porque os números estão incompletos, analisaram-se apenas os dados publicados pelo IBGE na “Síntese de indicadores sociais, 2002”: como o interesse maior é por brancos, negros e pardos, na brochura, tudo está restrito a esses segmentos. Mas os números vão muito além. Naquelas mesmas tabelas, os números relativos àqueles que se denominam amarelos jamais são citados. E eles são reveladores. No Brasil, os amarelos ganham o dobro do que ganham os também autodenominados brancos: 9,2 salários mínimos contra 4,5 dos brancos (os autodenominados negros e pardos ganham 2,5). Ora, se é verdadeira a tese de que é por racismo que os negros ganham menos, haverá de ser, em igual medida, também por racismo que os amarelos ganham o dobro do que os brancos. Se o racismo explica uma coisa, terá de explicar a outra, elementar princípio de lógica. E, então, chegaríamos à ridícula conclusão de que, no Brasil, os amarelos oprimem os brancos.
Não, o racismo não explica nem uma coisa, nem outra. Porque não somos racistas, repito. A explicação se encontra no nível cultural e na condição econômica dos diversos segmentos da população. Vejamos: os amarelos estudam, em média, 9,6 anos, os brancos estudam menos, 8 anos, e os negros, menos ainda, 5,7 anos. Os amarelos estudam mais e, por isso, ganham mais. Nada a ver com a cor. Diante desses números, mais lógico seria supor que é preciso redistribuir renda, para que os mais pobres possam melhorar de vida. E aplicar políticas sociais que tenham como alvo os pobres em geral, e não apenas os negros, para que tenham acesso a um ensino de qualidade. Melhor ensino, melhor salário. Porque tudo o que se diz em relação aos negros, pode ser dito com mais propriedade em relação aos pobres, sejam brancos, negros, pardos ou amarelos. São os pobres que têm as piores escolas, os piores salários, os piores serviços. Negros são maioria entre os pobres porque o nosso modelo econômico foi sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre.
Mas o leitor deve estar se perguntando: como pode um negro com o mesmo nível educacional ganhar menos do que um branco? Não pode. Nem as estatísticas dizem isso. O que elas mostram é que negros, com o mesmo número de anos na escola que brancos, ganham menos. Isso não quer dizer que tenham a mesma condição educacional. Basta acompanhar este exemplo hipotético: um negro, por ser pobre, estudou 12 anos, provavelmente em escolas públicas de baixa qualidade e, se entrar na universidade, não terá outra opção senão estudar em faculdade privada caça-níqueis; o branco, por ter melhores condições financeiras, estudou também 12 anos, mas fazendo o percurso inverso, estudou em boas escolas privadas e cursará a universidade numa excelente escola pública. A diferença salarial decorre disto e não do racismo: “Você é negro, pago um salário menor.” Infelizmente, não há estatística que meça quanto ganham cidadãos de cores diferentes com igual qualificação educacional. Da mesma forma, não é correta a afirmação de que brancos e negros, em funções iguais, ganhem salários desiguais. O IBGE não mede isso. Não há tabela mostrando que marceneiros brancos ganhem mais que marceneiros negros. O que ele faz é estratificar os segmentos em categorias: com carteira, sem carteira, domésticos, militares e estatutários, por conta própria e empresários. Ou por setores: indústria, comércio, agricultura etc. Mas nunca por função ou ofício ou nível hierárquico.
Vejamos o que acontece com militares e estatutários: de fato, negros ganham R$ 843,51 e brancos, R$ 1.201,56. Mas, novamente, é a qualificação educacional que conta para a diferença, não a cor. Ou alguém imagina que no século XXI, num país republicano como o Brasil, que se orgulha da sua Constituição Cidadã, um servidor público, civil ou militar, possa ganhar mais por causa da cor? Impossível, as carreiras são tabeladas. Ocorre é que quem não tem dinheiro não se gradua em general, por exemplo, seja branco ou negro. Há, provavelmente, mais cabos de origem humilde (portanto, mais negros) do que generais. A ausência de racismo fica mais clara quando se pesquisa uma categoria específica como os militares, mas sem a possibilidade de haver diversos níveis educacionais: os domésticos. Sem diferenças em anos de estudo, encontramos que a média salarial de negros é de R$ 203 reais e de brancos, R$ 211, praticamente iguais, portanto. O debate entre visões diferentes é sempre saudável. Eu acredito que a solução não é instituir políticas sociais com base na cor, correndo-se o risco de fazer o Brasil enfrentar algo desconhecido por aqui: o ódio racial. A solução é a continuação de políticas sociais voltadas para os pobres em geral, brancos, negros, pardos e amarelos. Se o Brasil mantiver este caminho, em pouco tempo as estatísticas vão mudar de tom. Sem ódios.
ALI KAMEL é jornalista.
Um comentário:
Kamel não e´só um grande jornalista mas se revela também um intelectual corajoso. Porque é muito cômodo repetir a conversa mole do racismo para justificar a politicagem das cotas raciais nesse país onde a demagogia do discurso birracialista parece estar na moda. Mìriam Leitão podia ao menos ter um mínimo de honestidade intelectual, mas enfim, quando se trata de prejulgar todo mundo chamando de racista e ao mesmo tempo defender a segregação no acesso ao ensino honestidade é o que não se pode esperar mesmo.
Recomendo "Não Somos Racistas", porque esse livro é um divisor de águas nessa maré de demagogia racialista que varre o país como um tsunami.
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